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Festa – Ou: Hiperacusia 

por Yvonne Miller
Desenho de Ariyoshi Kondo ilustra a crônica "Festa – Ou: Hiperacusia " de Yvonne Miller.

Yvonne Miller nasceu em 1985 na Alemanha, mas prefere o calor do Nordeste brasileiro, onde mora desde 2017. Cronista e contista, tem textos publicados em várias antologias e é uma das organizadoras e coautoras da coletânea de contos cearenses Quando a maré encher (Mirada, 2021). Pela Aboio, publicou Deus criou primeiro um tatu – Crônicas da Mata (Aboio, 2022).


Amigaaaaa, parabéns! Tudo de bom sempre! Ahh, obrigada por virem! Gente, bora juntar as mesas. KRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRRKRRRRKRKRKRR Boa noite, licença. Boa noite. Oi, oi. Tudo bem? Moço, lembra da bruschetta? Berinjela, né? Tá saindo. Beleza. ME LARGA, NÃO ENCHE, VOCÊ NÃO ENTENDE NADA, EU NÃO VOU TE FAZER ENTENDER Ei, essa é a DJ que te falei, lembra? E você, como conheceu a Pat? Foi por um amigo, o Carneiro. Ah, sim, que coisa triste, mulher, sinto muito. Pois é. Meninas, vocês querem conhecer a Joyce! Ela viajou sozinha pela Índia. Índia e Japão. Prazer, Yvonne. Larissa. Júlia. E aí, como foi essa viagem, iria de novo? Queria um cardápio… Olha, eu não recomendo assim pra geral, ah, vai, vai sozinha mesmo, sabe? Eu tenho uma relação muito forte com a VACA PROFANA PÕE TEUS CORNOS… Desculpa, não entendi. Eu disse que tenho um negócio forte com a espiritualidade e uma noite sonhei que estava numa cidade rosa e que faltava metade do meu cabelo. Ah, sim. Depois descobri que a cidade se chama Jaipur e fica na Índia. RESPEITO MUITO MINHAS LÁGRIMAS, MAS AINDA MAIS MINHA RISADA, ESCREVO ASSIM MINHAS PALAVRAS, NA VOZ DE UMA MULHER SAGRADaí fui. Sozinha mesmo. Marrolha, se a gente muitas vezes se sente assediada aqui no Brasil, não tem comparação com a Índia. Nossa, muito bom! Num tem um guardanapo, né? Só no trajeto de metrô do aeroporto de Nova Delhi pro hotel, sabe… Eu já tinha lido sobre, mas fiquei muuuito chocada. Porque é perseguição mesmo. Bom apetite! Obrigada! Quer outro prato? Precisa não, mas traz uma caipiroska de morango, pufavô. Certo. Todos os homens vêm falar com você ah, você viaja sozinha, vou lhe acompanhar PORQUE NEM TODA FEITICEIRA É CORCUNDA, NEM TODA BRASILEIRA É BUNDA, MEU PEITO NÃO É DE SILICONE, SOU MAIS MACHO QUE MUITO HOMEM E não largam mais você! Teve momentos que tinha três caras atrás de mim e um de cada lado. E não para aí, porque o negócio é físico mesmo. Eles encostam em você, seguram seu braço, estão o tempo todo invadindo seu espaço. Mais uma, por favor. E aí eu tive que abstrair, né. Saúde! Saúde! Porque pensei, se eu não abstrair vou ficar chateada o tempo todo e vai ser uma viagem horrível. Daí, em Jaipur, fiz um amigo e a gente tirou uma foto e aí eu ficava dizendo não, tô viajando com um amigo, e mostrava a foto. IT’S A PITY YOU ALREADY HAVE A WIFE, AND ME DONE HAVE A MAN INNA MI LIFE, RUDEBOY IT IS A PITY E a comida? Ah, eu adorei a comida indiana. Mas assim, é um negócio meio doido porque tem uns vegetarianos extremistas mesmo. Tipo, não come nem cenoura, sabe… Olha quem chegou! Oi, queridaaaa! Quanto tempo! Oi, Paulo. E aí? Sentem aqui, ó. KRRRRRR Peguem essas cadeiras. KRRRRR KRKRRR Pronto. A Joyce, é Joyce, né? É. Então, a Joyce tá contando de uma viagem pra Índia. Ah, que massa, e aí? Sim, tu tava falando da cenoura. Isso, só comem frutas que crescem no pé e tal para não matar a planta inteira. Então você pode achar nossa, eles têm muito respeito por outros seres, só que não né. Melhor pedir drinque logo, tá só dois reais mais caro que a cerveja. Muito menos se for mulher. Olha, vou contar minha versão cearense de história de perseguição. Sabe a feira dos pássaros? Sei! Menina, eu sou juíza, né. Toda vez que eu pergunto prum sujeito, onde comprou a arma, é sempre lá, sabe. Pois é, eu acabava de chegar em Fortaleza, tinha dezessete anos e meu irmão uns doze, acho. Ele queria muito comprar uns peixinhos pro aquário e aí me falaram da feira. A gente foi e estava lá olhando as coisas e tal, quando um cara vem falar comigo. Bem simpático, assim, CARCARÁ ele disse: PEGA MATA E COME Olha, não sei se você já percebeu, mas tem um homem te seguindo. Eita. Pois é, eu olhei e tinha mesmo. CARCARÁ É MALVADO É VALENTÃO Aí o cara falou assim: tem um posto policial bem ali, te acompanho até lá. E fui, né, boba! Caipiroska de kiwi? Pedi, não. Ã-ã, também não. Quem pediu a caipiroska, gente? Só que eu percebi que pra chegar no posto tinha que passar por um mato. Num foi você não? Pedi, mas a minha é de morango. Mas tinha posto? Tinha, eu via, só que no meio tinha um mato. E algo em mim me fez dar meia volta e arrastar meu irmão de volta pra feira. Caipiroska de morango? Valha, e o cara? Aqui, moço. Não sei, não olhei pra trás. Psiu. Oi! Só sei que no meio do povo vi meu professor de português. Oi, psssiu! Sim? E comecei a chorar e disse: Traz a continha por favor? LUCRO, MÁQUINA DE LOUCO Me tira daqui, por favor!  

Fortaleza, outubro de 2023 


Desenho de Ariyoshi Kondo.

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